Igreja, espiritualidade e cultura

“Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que esta nos céus.”(Mateus 5:13-16).

Os versículos acima expressam uma espiritualidade voltada para um mundo exterior: “Vós sois o sal da terra e a luz do mundo.”  Todavia ela também é transcendente, porque se dá através de obras que glorificam a Deus:  “...para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que esta nos céus.”  Desta forma a espiritualidade cristã não pode estar alienada das realidades  culturais, simplesmente porque o reino de Deus deve invadir, permear e influenciar todas as áreas da cultura. Esta proposta, todavia, esbarra em dissociações e incompreensões da natureza do reino de Deus e do evangelho.

1.     Dissociação entre o evangelho do reino e a obra salvífica de Jesus Cristo

Evangelho significa “boas novas.”  No contexto dos evangelhos sinóticos refere-se a uma nova ordem a ser inaugurada: “Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo esta cumprido, e o reino de Deus, esta próximo; arrependei-vos e crede no evangelho.” (Mc 1:14-15). Fica claro aqui, que o evangelho diz respeito à chegada do reino de Deus na pessoa de Jesus Cristo.

A experiência de salvação ocorre com a mudança de estado e posição espiritual relacionada a entrada no reino de Deus: “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do filho do seu amor, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados.” A redenção, portanto está relacionada à pessoa de Jesus Cristo, Sua obra e Seu reino.

Quando abdicamos do reino e enfocamos apenas a redenção, a evangelização e o discipulado passam apenas a tratar da salvação de almas e ensino de doutrinas, não comprometendo as pessoas com a espiritualidade integral, como é entendida na palavra hebraica que traduz Shalon = paz. (Indica um relacionamento reconciliado com Deus, consigo mesmo, com o semelhante e com a natureza). Isso corresponde a um estilo de vida em plena harmonia com a totalidade da vida (epiritual e terrenal).

Por este angulo precisamos refletir nossa soteriologia (doutrina da salvação), associando-a ao reino de Deus, para deste modo termos uma eclesiologia (doutrina da igreja), consistente com a missão integral da igreja e uma escatologia (doutrina das últimas coisas), relacionada com a presença atual e futura do reino de Deus através da pessoa e obra de Jesus Cristo.

2.     Dissociação entre forma e essência

Essência diz respeito aos conteúdos de nossa fé, enquanto a forma se relaciona com a estrutura através da qual os conteúdos se expressam. Daí uma não pode subsistir sem a outra. Todavia no afã de combater os extremos (conservadorismo, formalismo, ritualismo, legalismo, moralismo, sacramentalismo e institucionalismo), caímos no essencialismo o qual por sua vez, rejeita todos os aspectos que dão forma aos conteúdos. Nesta luta contra os “ismos”, adotamos uma cosmovisão que acaba por negar a autoridade, a verdade objetiva e as formas institucionais como elas se expressam. Em decorrência disso, a piedade deixa de ser também externa (“... para que veja as vossas boas obras...” Mt 5:16) sendo substituída por um tipo de espiritualidade meramente interiorizada, pietista e monástica. Doutra sorte, quando enfatizamos demasiadamente as formas perdemos contato com a espiritualidade interior e com os fenômenos transcendentes. Dai todo arcabouço da fé se concentra no que é meramente exterior, na formalidade, no rito, nas estruturas, nos métodos que acabam por descaracterizar os pressupostos e elementos que constituem a essência da fé. A forma passa a ser um fim em si mesma (Exemplo: As reuniões são mais importantes do que os objetivos delas).   

A IGREJA E A ORDEM CULTURAL 

1. A criação e o governo de Deus

Após a criação dos céus e da terra,  Deus criou o homem com um mandato cultural: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar.” (Gn 2:15). Certamente esta cultura inicialmente agrária se desenvolveria a medida que a criação fosse multiplicando-se. Conseqüentemente, surgiriam novas formas de governo, organização da economia e distribuição de bens e produtos. Tudo isso em plena harmonia com a benção de Deus sobre o primeiro casal que recebeu a comissão divina de governar sobre toda a criação. Entretanto, como resultado da queda surgiram estruturas humanas de governo independentes de Deus. Isto, não obstante, não exime a responsabilidade do povo de Deus em relação ao mundo criado. A redenção visa resgatar o que foi perdido na criação: O homem, a família, a terra e o governo de Deus. Nesse sentido, Jesus Cristo é o ultimo Adão e segundo homem no qual a igreja, Sua família é introduzida para com isto resgatar também a terra e o governo de Deus sobre ela (Cf. 1ª Co 15:45; 1ª Co 5:27 e Rm 8:18-23).

2. A igreja e sua responsabilidade social

A igreja como povo escatológico, expressão presente do reino vindouro de Jesus Cristo, deve por sua influência e obras transformar a cultura, adentrando nos seus valores e necessidades espirituais e naturais. Somos salvos e purificados para as boas obras (Ef 2:10 e Tt 2:14). Aparente contradição entre Paulo e Tiago no que se refere à fé e obras inexiste. Paulo enfatiza a fé como causa da salvação (Ef 2:8-9). Tiago por sua vez, enfatiza a fé como evidencia dela (Tg 2:14-17).  

Decorre do que foi dito acima, que a igreja tem responsabilidade social. Não pode de forma alguma ser transformada num gueto ou mosteiro, alienada de sua missão de salgar e iluminar a sociedade por suas obras.

3. Considerações finais

a.     A igreja por sua dimensão espiritual, tem a missão de pregar o evangelho, fazer discípulos, promover a mutua edificação de seus membros para serem conforme a imagem de Jesus, congregar-se regularmente e ser um povo especial de Deus, como lemos em 1ª Pe 2:9: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamar as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz.” Isto a distingue das ordens seculares;

b.     Esta sua natureza e vocação especial, impede-a de impor sua responsabilidade de ação sobre outras esferas da sociedade (o Estado, por exemplo).  Também não pode estatizar (deixar só para o estado) ou secularizar (deixar somente para as entidades seculares) a responsabilidade pessoal e coletiva, de fazer o bem como condição essencial da sua presença transformadora no mundo. Doutra sorte, não deve priorizar as ações sociais, limitando-se apenas a cuidar de obras e projetos sociais, por mais importantes que estas sejam. Todavia, por ser um projeto divino na história, não deve se isolar de suas responsabilidades para com o ser humano e suas necessidades.

Desta forma, vivendo sempre a tensão entre um reino que já veio e produz seus efeitos na ordem atual; e um reino vindouro na segunda vinda de Cristo, que consumará a nova ordem social na qual habitará justiça, proclamemos o eterno através de nossa fé e obras, por meio da graça de Deus e do poder do Espírito Santo. As expectativas de nossas ações presentes devem ser dimensionadas por nossa bendita esperança na volta de Jesus, quando teremos o reino de Deus consumando e implantado em sua forma definitiva. Até lá pratiquemos o bem a todos como antecipação histórica e profética dos bens vindouros.

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